domingo, 23 de agosto de 2015

Passo o café e amanheço torta

É Sábado. Amanhece crescida, como se os órgãos tivessem dilatado dentro do corpo. Amanhece grande, torta e desconhecida de si mesma. Ontem quando deitou pensou “preciso reunir meia dúzia de palavras”, “preciso escrever ”, “qual é o tema?”. Tenta se reorganizar, passa diante do espelho e se olha, tudo normal por fora. Mas, por dentro, por dentro é onde todo o perigo mora. É por dentro que as portas se abrem em espirais de vertigem. É por dentro que os abismos aparecem no escuro, enganando a visão para te pregar peças. Por dentro, é jogo de caça. Gostaria de pegar uma lupa com câmeras para examinar tudo: das amígdalas à diante, e retirar, quem sabe? As tripas, o pâncreas, fígado, e o coração. Pesá-los numa balança. Órgão por órgão. Colocar tudo em cima da mesa e observar as fissuras, as dilatações e as cores. E apertá-los, diminuí-los em máquinas de compressão. Enxugar a água e deixar secando na mesa. Tirar todo o peso, para só depois enfiar tudo de volta. “É possível crescer aos trinta?”. Arrasta-se pesada até a cozinha põe a água do café para ferver e pensa “preciso reunir meia dúzia de palavras, preciso me concentrar”. Coloca a comida do gato e observa a janela “lá fora a chuva anuncia o outono”. “Poderia começar assim o texto”. Passa o café e observa a vapor dançando no espaço.  Bebe o café amargo. Abre bem a janela para deixar a claridade entrar. Precisa escrever, mas o incômodo da noite paira sobre os dedos. Escreve “Lá fora a chuva anuncia o outono”. E de repente, a caneta passeia por toda a folha virgem num automatismo surpreendente, discorre em letras tudo que vagueia em teus pensamentos. As sombras e os desejos ocultos, que agora, tornam-se claros e expostos à luz dia, resplandecidos. As folhas de papel crescem, parece que são vivas, ramificando-se em letras. Folhas e folhas, caules, e flores, da semente ao esplendor do fruto. Comeria de tão maduro. Do pequeno ramo até o mais robusto galho, sua escrita árvore não é de outono, mas sim de primavera. Sua escrita se manteve em semente na terra até ganhar voz corporificada no papel. Poderia discorrer florestas imensas e repousar em teu poema, enquanto um outro vinga silenciosamente do outro lado da página. Poderia se lançar, pendurando-se de um galho até outro, dona de todo o verde selvagem plantado por tuas mãos na terra virgem do papel. Poderia pegar a terra e cheirá-la, e senti-la húmida e fria entre os dedos. Poderia cavar os pés e também virar raiz. Crescer dessa forma não era pesado, era vivo. Crescer em verde na escrita de tuas florestas habitadas pelas letras era com crescer em árvore, da raiz até a copa, da terra até o sol, e ser alta: empoderada. Para adentrar em sua mata, qualquer um deveria de ser convidado, pelo prazer da leitura. Do gozo compartilhado. Em tua escrita abundante e serena, das folhas que viravam-se naturalmente ao som de teu corpo, escrita, finalmente, por um ponto final. “Final de que”? Pergunta. Se tudo inicia-se pelo meio? Relembra do acordar do dia, já se passa das 3 da tarde. Ainda não comeu. Os órgãos, enfim, diminuíram. Diagnóstico precoce de um estranhamento dissecado pela faca aguda da escrita. Agora, tudo se torna mais leve e fluido. Subir nas árvores, lhe deixou mais leve. A lupa câmera para enxergar os olhos, já não é mais necessária. Tem a certeza de que a poesia lhe é uma espécie de chapa radiográfica. Mas ainda precisa reunir meia dúzia de palavras.

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